quinta-feira, 11 de agosto de 2011

postheadericon ESTILIZAÇÃO DO GESTO COTIDIANO (Ana Julia Marko)


Em 1935, a fim de transcender a técnica do ballet clássico utilizando-se da dramaticidade do teatro, o alemão Kurt Jooss criou o termo Tanztheater (dança-teatro ou dança teatral). Joss não ensinava um estilo ou uma técnica, mas sim se utilizava dos gestos do cotidiano e das histórias de seus alunos-bailarinos. Ele lapidava as possibilidades que o intérprete trazia em seu corpo, as ampliava e as utilizava na criação artística. Pina Bausch  (1940-2009) pode ser considerada a herdeira direta de seu professor Kurt Jooss e, assim como ele, estimulava seus bailarinos a encontrarem em si mesmos ferramentas e possibilidades para se desenvolver e exporem suas fragilidades e experiências de vida no palco, diferentemente do que um dançarino faz no ballet clássico ao representar tecnicamente um papel. Bausch, interessada nas intersecções entre arte e vida, estimulava seus bailarinos a contribuírem com a criação a partir de suas próprias biografias. Desse modo, a coreógrafa ampliava o repertório técnico da dança moderna, introduzindo novos elementos como gestos do cotidiano: abraçar, se arrumar, se relacionar com o sexo oposto, gritar ou suspirar etc. “Trata-se de um teatro que, através de recursos de confrontação direta, constrói uma realidade, comunicada de uma forma estética, tangível como uma realidade física” [1].
Nos espetáculos de Bausch, os bailarinos representam a si próprios, suas próprias histórias e impressões sobre o mundo, executando gestos que são facilmente identificados pelo espectador com o aquilo que se passa no seu dia-a-dia. Nas peças, os performances de Bausch são chamados pelos seus nomes; mostram fotos antigas, contam experiências vividas. Isto não quer dizer que a encenadora se interesse por incentivar um processo terapêutico calcada nas egocentricidades de cada bailarino, mas sim em, através da marca do real, subverter o que é subjetivo e ampliá-lo para um gesto que pode ser entendido, apreciado e identificado por um coletivo maior. Bausch desarranja as construções gestuais de cada corpo Dessa forma, ela “subtrai deseus personagens – e dos espectadores – o chão firme de seus hábitos,enviando-os a paisagens distantes, nas quais eles se vêem obrigados a encontrara si mesmos, uma vez que todas as perspectivas foram invertidas
Esse gesto cotidiano é circunscrito a um universo de estilização e de construção artística. Por exemplo, no espetáculo Cravos, há um bailarino que executa uma partitura com a linguagem das libras para traduzir o que a música The man I love diz. A estilização acontee já que o gesto aparentemente cotidiano (falar em libras) é inserido em executado por um ator de terno e gravata no meio do palco coberto de milhares de cravos de plástico. Quando o espectador assiste a essa cena, identifica elementos da realidade mas não porque a linguagem é realista, mas sim estilizada.
A própria ação de dançar e sua cotidianidade são estilizadas e até mesmo ironizadas em Bandonéon onde a música, a disposição dos bailarinos todos em fila e sua expressão de sorriso congelado são elementos que deslocam o gesto da vida para algo que não é mais natural ou comum e sim artístico. No mesmo espetáculo, há outro exemplo que também transgride a própria dança: os bailarinos, inspirados pelos movimentos do tango, dançam de forma não convencional. As mulheres, sentadas nos ombros dos homens de repente caem no chão e ali continuam dançando Carlos Gardel com seus pares. Aqui, quando se diz em estilização, se usa o termo que se aproxima da definição de estilização elaborada por Patrice Pavis em seu dicionário do Teatro:

A escritura cênica apela à estilização a partir do momento em que renuncia a reproduzir mimeticamente uma totalidade ou uma realidade complexa. Toda representação baseia-se numa simplificação do objeto representado e numa serie de convenções para significá-lo. (...) O ator substitui o ato real por um ato significante que não se dá por real, mas é assinalado como tal, em virtude de uma convenção. Paradoxalmente, é muitas vezes na medida em que é estilizado que o ato passa a ser teatralmente válido e verossimilhante. Assim, não é constrangedor ver os atores fazerem uma refeição em travessas e pratos vazios. A estilização ajuda mesmo ao fascínio do jogo teatral, na medida em que devemos superpor ao ato cênico um ato real, no interior da ficção. [2]

Isto quer dizer que para Pavis, a ligação entre a realidade e o universo estético não precisa ser necessariamente direta e mimética. A escritura cênica pode não ser submetida à marca do real, modelizando a realidade, mas sim a transgredindo, a deformando e lhe apresentando outras possibilidades. A teatralidade estilizada, trabalhada constantemente na obra de Pina Bausch, possui uma potência alargadora do olhar sobre a realidade. Segundo Fábio Cypriano (2005, p.36), o palco de Bausch funciona como um “espaço mediano”, ou seja, um lugar de ligação entre dois espaços definidos, um corredor entre a cozinha e a sala, um espaço entre duas fronteiras, uma terra de ninguém. O palco de Bausch não é a realidade, mas tampouco é apenas teatral. Por exemplo, em Cravos e em O limpador de vidraças há uma clara tensão entre natureza e artificialidade, pois em ambos os espetáculos, o cenário é composto por milhares de flores de plástico que dão a ilusão de que são reais.
Ao mesmo tempo, nos espetáculos da coreógrafa, a natureza é explorada de inúmeras formas, como podemos ver em Vollmond o que resulta em imagens impressionantes. Bausch encena de modo a romper os limites da representação e trazer a materialidade real para o palco. Os elementos naturais são fatores de risco para os bailarinos e interferem de modo concreto nos seus gestos e movimentos. É diferente dançar com ou sem água, terra ou neve por todo o chão. Ao se movimentarem sobre um palco de água os bailarinos estão sujeitos a quedas. Quando caminham sobre montes de terra podem sofrer torções. “O natural não é necessariamente belo e o belo não é necessariamente natural” (CYPRIANO, F. 2005, p.115).

Potencia pedagógica
Uma parte significativa das encenações contemporâneas concilia a investigação da natureza humana com a exploração de formas cênicas renovadas, que ultrapassam os modelos dramatúrgicos convencionais, centrados na noção de drama e na transmissão de narrativas verbais. O estudo das novas formas cênicas se faz necessário e merecem ser debatidas e investigadas. O diálogo entre a pedagogia e a teatralidade implica uma pesquisa conectada com o mundo contemporâneo, com as novas formas e concepções de teatro. Segundo Féral, em seu artigo publicado na revista Sala Preta, as novas pedagogias são indissociáveis de novas versões de teatro. Não há um pensamento único sobre teatro e sobre pedagogia. As formações diversificaram-se, não há teorias dominantes. Os modelos de pedagogia e teatro são tão variados quanto as diferentes práticas, encenadores e pedagogos.

De fato, acredito que nosso papel como pedagogos é tentar analisar da melhor forma aquilo que vemos, isto é, assinalar os movimentos, as correntes, uma evolução, relacionar as práticas, contextualizá-las. E para isso é preciso saber manter-se aberto às diversas práticas, mas também às teorias, incluindo aquelas das outras disciplinas, a fim de importar saberes de um domínio para outro. É apenas assim que renovamos verdadeiramente o campo da prática. Em outras palavras, é preciso saber não permanecer fixados em nossas certezas e nossos conhecimentos.[3]

Em suas obras, como podemos ver no trecho do documentário O que fazem Bausch e seusdançarinos em Wuppertal? , a coreógrafa Pina Bausch inaugurou essa dinâmica de criação com seus bailarinos baseado em perguntas do cotidiano: amor e ódio? Solidão e companheirismos? Como segurar um bebê? Como se ri? O que acontece quando choro? As respostas levadas ao palco apareceram sob formas múltiplas: na dança, na voz e no gestual do elenco. É fundamental ressaltar que os procedimentos de estilização do gesto elaborados por Bausch podem contribuir para a área da pedagogia teatral. Suas coreografias inventadas a partir de experiências da vida de cada bailarino contribuem para novas metodologias e práticas no campo do trabalho da apreensão da linguagem teatral, ao investigar as ferramentas necessárias para se falar sobre o mundo de uma forma não cotidiana.
O procedimento que convida o gesto cotidiano a ser reelaborado e reconstruído a partir de artifícios cênicos se distancia da tentativa do teatro reproduzir a realidade tal como é. Podemos olhar para essa dinâmica como um possível foco metodológico na situação de aprendizagem teatral. Em um processo pedagógico onde os participantes são convidados a pensar e experimentar a materialidade teatral aliada à forma coreográfica como potências de produções de outros sentidos do mundo, o estudo da linguagem teatral em si relacionado ao da expressão pela dança pode ser considerado motor de invenções e elaborações de novos modos de olhar, perceber e estar no mundo.
Nesse processo, o artifício – apontado e claramente encontrado na cena – pode nos lembrar que aquilo é uma obra, uma construção: algo que não é a realidade provável, mas sim uma ficção possível que pode apontar novas possibilidades de vida: diferentes das ditadas pela norma da sociedade. Dessa forma, um trabalho que investigue a estilização proposta por Baush, é um trabalho que investe no estudo e na manipulação da linguagem em si, aquela que se permite afasta do que é real, normal e cotidiano.
Aos participantes desse possível processo pedagógico, seria oferecido material que os possibilitassem elaborar construções teatrais e coreográficas baseadas no gesto cotidiano, em suas memórias e experiências da realidade. Levando em conta as gestualidades de cada participante, o trabalho, trazendo a linguagem artística da dança e do teatro, objetivaria o exercício da transformação da ou re-elaboração do que é considerado comum em artifício artístico, em construção estilizada. Assim como os bailarinos de Bausch, os alunos seriam provocados com questões simples que remeteriam ao seu dia-a-dia, mas suas respostas deveriam vir de forma artística e não-cotidiana. Desse modo, eles poderiam se apropriar de elementos cênicos, escolhendo-os e coordenando-os em uma obra com linguagem artística, a fim de construir um discurso a partir de formas cênicas diferentes das formas cotidianas. Essa seja, talvez a grande contribuição dos procedimentos inventados por Baush ao campo pedagógico do teatro: a possibilidade de ampliar o olhar e o dizer sobre o mundo. “Todo modo de comunicação é válido para a dança-teatro. E o palco é sempre um ambiente que propicia contrastes para essa abordagem; transforma-se numa realidade irreal.” (CYPRIANO, F., 2005. p.19)
A seguir coloco fotos de dois processos pedagógicos que conduzi: Revelações, uma novela de Vilã Leopoldina, a do bairro com o grupo Organicostrangênicos do Núcleo de Artes Cênicas do SESI Vila Leopoldina em 2009 onde atuei como coordenadora das oficinas teatrais propondo a investigação do gênero melodrama; e Sonho de uma noite de verão de William Shakespeare com o grupo de teatro do ensino médio do Colégio Santa Cruz em 2010, onde atuei como assistente de direção do professor Vicente Latorre.
Ambos os processos trabalharam com a tentativa de construção de uma experiência estética sobre temas cotidianos. No primeiro exemplo, um coro de grávidas – com suas bolsas prestes a estourar – acrescenta, através de uma operação de linguagem, teor artístico à percepção da cena. O alargamento do olhar e das possibilidades de construção artística se dá no momento em que personagens banais do melodrama se tornam interessantes, ou quando temas absolutamente cotidianos são estilizados e separados dessa realidade: a paixão platônica, no caso de Sonho de uma noite de verão foi trabalhado no coro da personagem Helena que, composto por vários atores, se movimentava com gestos irônicos e clichês representando seu patetismo romântico.
Por fim, é importante também analisar o trabalho de conclusão da disciplina de pós-graduação Encenações em jogo, ministrada pelo professor Marcos Bulhões no primeiro semestre de 2011.  Nesse processo, no qual participei como criadora e intérprete nos foi proposto uma construção de partituras individuais a partir da inspiração da obra de Pina Bausch, mais especificamente ligadas ao tema praia. após a elaboração das partituras, um dos participantes se prontificava a ocupar a função de diretor, organizando-as em uma cena-colagem. Minha partitura se desenvolvia em uma série de gestos e movimentos com um telefone antigo. A ação consistia em cruzar o palco algumas vezes em diferentes direções, arrastando o telefone preto com o fone distante do ouvido. Nesse caso, também pode-se notar um gesto cotidiano (falar ao telefone) sendo estilizado através de gestos incomuns executados por uma atriz com um figurino não-cotidiano, compondo um cena com outras atrizes ao som de uma trilha sonora, na frente de uma grande projeção de imagens de tema praia.
Para a criação desta partitura individual, participamos do Jogo do guia espelhado com gesto estranhado: em roda, um integrante executa e repete uma partitura corporal que evolui de gestos cotidianos para gestos estranhados. Esta partitura, por sua vez, é espelhada pelo restante do grupo. Com esse exercício, fomos nos familiarizando com a transição e modificação do gesto cotidiano ao gesto estranhado e incluindo essa forma ao nosso repertório. Jogos desse tipo podem fazer parte de processos pedagógicos que querem convidar o seu participante a pensar a linguagem teatral como modo artesanal e artístico de se olhar o mundo mais do que um modo comum e cotidiano.

BIBLIOGRAFIA
CALDEIRA, S. O Lamento da Imperatriz – A linguagem em trânsito e o espaço urbano
            em Pina Bausch. São Paulo: Annablume , 2009.
CYPRIANO, F. Pina Bausch. São Paulo: Cosacnaify, 2005.
FÉRAL, J. “Por uma poética da performatividade: o teatro performativo”. In: Sala         Preta n.8 2008
______________  “Teatro performativo e pedagogia” In: Sala Preta n 9. 2009.
FERNANDES, C,. Pina Bausch e o Wuppertal dança-teatro: repetição e transformação.
            São Paulo: Annablume, 2007.
­­­­PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.
PEREIRA,S., Rastros do Tanztheater no Processo Criativo de ES-BOÇO. São
            Paulo: Annablume, 2010.





[1] SERVOS, N., Pina Bausch Wuppertal Dance Theater os the art of training a goldfish. Colônia: Rolf Garske, 1984, p.20 citado por CYPRIANO, F. 2005, p. 28
[2] PAVIS, P., 1999, p.147.

[3] FÉRAL,J. 2009 p.262

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