sexta-feira, 26 de agosto de 2011

postheadericon MUSICALIDADE NO ATOR


É antiga a busca da musicalidade no fazer do ator. Desde os primórdios o teatro clama por um diálogo com a música. Esse diálogo pode se dar em diferentes níveis, desde a trilha sonora até a apropriação da música como forma de expressão, passando por inúmeras possibilidades.
Nessa busca se lançaram inúmeros gênios do Teatro. O próprio Constantin Stanislavisky, Vsevolod Meyerhold, Richard Wagner, Bertold Brecht, Antonin Artaud, Etiene Decroux e Bob Wilson, entre outros. Todos, à sua maneira, traçaram fricções com a música e sua utilização por parte do ator, mas certamente é neste último que ela foi levada às últimas consequências.
Em Stanislavsky, encontramos a questão do tempo-ritmo, que afeta a fala e o corpo do ator, produzindo estados internos e externos capazes de revelar o que está sendo vivenciado em cena. Foi o início de uma sistematização, que permitiu sua evolução para a forma como conhecemos hoje.

Meyerhod, aprofundou essa visão, quando passa a desenvolver conceitos nos quais se inserem a música e no trabalho do ator, como acentos e suspensões no movimento e na fala. Para ele Teatro Musical é todo gênero artístico que traga fricções em vários níveis entre teatro e música, em relações que nem sempre serão de equivalência, dada sua complexidade e possibilidade de variação.
A partir de seu trabalho, chegamos a crer que o ator deve conhecer/ter conceitos musicais bem desenvolvidos para ser capaz de compor uma interpretação a partir de diálogos entre as músicas, audíveis e inaudíveis, valorizando o texto (em sentido amplo), estruturando-o e aprofundando seu sentido.

Assim, a musicalidade num espetáculo teatral pode vir de inúmeros lugares, dentre eles:
a) fomentada pelo(s) diretor(es)
b) extraída do texto
c) "bagagem" do ator

Acreditamos, então, que o espetáculo deve ser construído como uma sinfonia, mesmo quando a música não é escutada, mas pelo impacto emocional, lírico ou crítico conseguido com o texto.
A música resulta do movimento. Tudo que vibra mais de 16 vezes por segundo se torna audível ao ouvido humano. Mas nem tudo que é audível é música. Nesse momento é importante trazer o conceito de música hoje .
Quando todos esses grandes estudiosos do teatro falaram de música e cena, tanto uma quanto outra coisa eram bem diferentes das dos dias atuais. Para isso nos socorremos de Murray Schafer, para quem música é uma experiência estética cumulativa e não excludente, a organização de sons (agregando ritmo, melodia e silêncio) com a intensão de ser ouvida. Assim o ruído é a expressão indesejada, planejada ou não.

Podemos dizer então, que há musicalidade no fazer do ator, quando este acumula em seus movimentos, olhar, respiração e nos sons que emite, experiências estéticas com a intenção de serem vistas, ouvidas, sentidas ou apreciadas.

Para exemplificar a utilização de musicalidade no trabalho do ator, escolhemos trechos de vídeos de espetáculos e de experimentos realizados sob a orientação do professor Marcos Bulhões no CAC-ECA-USP, na disciplina “Encenações em Jogo: experimentos de criação e aprendizagem do teatro contemporâneo”, que servem como referências dos processos que culminaram em apresentações musicalizadas.

Robert Wilson, que além de grande encenador é artista plástico, ligado à dança e ao teatro, conheceu o trabalho de Martha Graham, com quem fez “Snow on the Mesa” e de Alwin Nikolais, de quem foi assistente técnico. Esteve ligado aos happenings, inicado pelo músico John Cage, entre outros é um artista com muita disponibilidade para a música.
Exatamente por isso produz inúmeros espetáculos onde a musicalidade é notória e essencial na construção e na expressão artística. Podemos citar duas obras dele: “Shaekspere’s Sonette”, espetáculo onde a música é a comunicadora. A utilização de sonoridades e tempo-rítmo é extremamente necessária para a construção cênica, marcando as ações dos tipos apresentados, e “Einstein on the Beach”, a música é provocadora de emoções, também presente nos corpos dos atores, não pela mera coreografia dos movimentos, mas pela composição que geram.
Em sua encenação a musica é um dos motes centrais, uma vez que tudo se relaciona a ela, que determina o tempo e o ritmo dos atores, das cenas e do espetáculo, em movimentos de concordância ou dissonância, ou ainda em polifonia em relação a ela.

Existem fontes nacionais também. No espetáculo “Rainha(s) – Duas atrizes em busca de um coração” a musicalidade pode ser percebida nos movimentos das atrizes, em seus olhares e principalmente na utilização das pausas e suspensões.
Em nossos experimentos, realizados no primeiro semestre de 2011, tanto no grupo 1 quanto no grupo 2, podemos notar a importância da música e da musicalidade nos resultados obtidos. Obviamente a influência de Bob Wilson e Pina Bausch conduziram a isto.

Note que nem sempre a musicalidade em cena é o foco principal do diretor ou do ator, mas quando presente conquista um resultado que conecta no público um lugar onde ele pode completar a comunicação e ela acontece com maior facilidade. Esta busca encontrou em Bob Wilson uma grande expressão e escola, que certamente vale ser estudada.
segunda-feira, 22 de agosto de 2011

postheadericon ESTRANHAMENTO OU EFEITO DE ESTRANHAMENTO

(Por Daniele Cristina Oliveira)

O verbete Estranhamento é um termo utilizado como um procedimento de escritura cênica que traz para a cena um diálogo entre elementos. Este diálogo se dá através de um embate dialético, propondo para o espectador uma postura ativa e completamente presente, uma postura crítica e não habitual e desconexa do que acontece na cena, mas viva e transformadora.

Estranhar, afastar, admirar, assombrar, espantar-se, sentir pasmo, desconforto, repulsa, aversão, curiosidade, distanciamento diante do conhecido ou do que não se espera, para a partir disso, sentir-se vivo,  ativo, olhando, percebendo o mundo, integrado nos fenômenos da natureza e da arte. 

Estranhamento, Ostranenie, Verfremdung, Weirdness, Etranger podem ter a mesma tradução, porém, não o mesmo significado e significante. A palavra traz em si diferentes imagens, sonoridades, seus diversos significantes isso se percebe não somente na língua mãe, mas quando se vê também em diferentes línguas. De certa forma tudo o que é desconhecido causa um certo estranhamento, desconforto e só após o reconhecimento que esta sensação se esvai, mas quando algo habitual gera o estranhamento, acontece algo ainda mais profundo, que talvez seja uma relação de inversão do conhecido, transformando-o para gerar um outro tipo e grau de análise.

Nos estudos da semiótica, Charles Sanders Pierce traduz muito bem esta questão do conhecimento explícito que se chega ao reconhecimento usando três categorias: Primeiridade, Secundidade e Terceiridade.

          Descrevendo rapidamente o estudo da semiótica na visão de Pierce:


Na primeiridade acontece a compreensão superficial do objeto, é o encontro, a qualidade de relação e consciência imediata, há a relação de frescor e liberdade.

Na secundidade acontece uma leitura e uma compreensão mais profunda do objeto e a relação é mais íntima, há um diálogo e um possível embate.

Na terceiridade a relação é a da camada de pensamentos, dos signos, é a interpretação, representação do objeto no mundo ou, a interpretação acerca do mundo conectado à própria experiência de vida do sujeito.

Quando esta relação se dá, a sensação de estranhamento começa a se dissipar por se ter uma relação íntima, de representação, interpretação, diálogo e apreensão da coisa. E a obra de arte que traz o efeito de estranhamento, utiliza do conhecido, do cotidiano, do que se está acostumado e transforma a coisa, o objeto para que o sujeito se distancie e assuma uma postura política, crítica, ligado com o que está diante dele: a obra.


A palavra estranhamento ou Ostranenie foi um termo utilizado por Victor Chklovski ((1893–1984) considerado o pai do formalismo russo.) em seu trabalho “A Arte como procedimento” publicado em 1917.
Para Chklovski este termo seria o efeito criado pela obra de arte para distanciar o público causando a sensação de estranhamento em relação ao modo comum como apreendemos o mundo e a arte, e a partir disso permitiria que o público entrasse em uma outra dimensão que seria visível através do olhar artístico e ou estético.


Para Chklovski,

“A finalidade da arte é dar uma sensação do objecto como visão e não como reconhecimento; o processo da arte é o processo de singularização ostranenie - (estranhamento) dos objectos e o processo que consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O acto de percepção em arte é um fim em si e deve ser prolongado; a arte é um meio de sentir o devir do objecto, aquilo que já se ‘tornou’ não interessa à arte.”


Distanciar, causar estranhamento no âmbito da cena teatral é tirar o espectador de um lugar conhecido, natural e fazer brotar a sensação de espanto, curiosidade e desconhecimento para que ele tenha uma postura crítica, tirando-o do estado amorfo criando o estado ativo e conectado com a obra. O estranhamento é uma forma de questionar o processo de trazer a naturalização que continua presente em nosso olhar.

O efeito de estranhamento (ou distanciação) consiste em uma prática que permite tirar a naturalidade da cena teatral, o rompimento da quarta parede e a sua utilização requer uma mudança no que se pode denominar habitual e cotidiano.




V-Effekt ou Efeito V do alemão Verfremdungseffekt que em francês effet de distanciation é uma elaboração de Bertlot Brecht que pode ser traduzido como “efeito de estranhamento” ou “efeito de distanciamento” e ainda como “efeito de desilusão”. Para Brecht distanciar é “historicizar” e o “desconhecido desenvolve-se somente a partir do conhecido”, ou seja, você só pode se distanciar de algo que você conhece e que lhe é cotidiano.  Então, partindo do que podemos chamar de conhecido, habitual, cria-se o “desconhecido”, o estranho.
           
Veja dois exemplos do jogo do guia com gesto estranhado, a partir de exercícios realizados com o grupo dos alunos da Pós-Graduação em Artes Cenicas da USP.





No livro A Pedagogia do Espectador, Flávio Desgranges citando Benjamim coloca a visão de como o Teatro deveria apresentar as situações ao espectador:


“O Teatro deveria apresentar situações de maneira tal que proporcionassem ao espectador o estranhamento da situação habitual, a percepção de uma vivência alienada, e despertassem nele a vontade de intervir, de tomar para si a condução de suas atitudes.(...) Distanciado do habitual, o espectador descobriria a verdadeira face do familiar, reconhecendo o conhecido.” (Desgranges. 2003, p. 94).


Esta relação de se distanciar do habitual para refletir sobre o que se vê, traz ao espectador uma outra percepção diante da realidade, uma percepção e descobertas das múltiplas possibilidades para uma mesma coisa, pois ele não se deixa envolver completamente impossibilitando o raciocínio, ele está ativo. Desgranges ainda coloca que o estranhamento do cotidiano traria questões que costumeiramente seriam naturais, mas que após este efeito causariam no espectador certa surpresa e “assombro diante da realidade cotidiana”, para ele este assombro é “a tomada de consciência e percepção da dimensão social do acontecimento, a descoberta das muitas possibilidades de desdobramento e desfecho para o mesmo fato”. (Desgranges. 2003. p. 95).

O Prof. Eduardo Montagnari coloca uma contribuição de Brecht no texto Naturalização e Estranhamento e nisso pode-se observar o quão ativo e consciente é o espectador partindo deste termo:


Estranhem o que não for estranho
Tomem por inexplicável o habitual
Sintam-se perplexos ante o cotidiano
(...)
Façam sempre perguntas
Caso seja necessário
Comecem por aquilo que é mais comum
(...)
Para que nada seja considerado imutável
Nada, absolutamente nada,
Nunca digam: isso é natural!


Este é um exemplo sobre a questão da pedagogia de um teatro para um espetáculo que o espectador está completamente ativo, uma postura política e ativa diante do objeto e da obra, de alguém que está conectado, que dialoga e debate com o que é proposto.

Em Portugal a tradução de estranhamento se dá como efeito de distanciação. No Brasil, o uso mais comum é o efeito de distanciamento, mesmo que alguns autores e estudiosos usem o efeito de estranhamento. Para Patrice Pavis, o melhor a se aplicar é a idéia de estranhamento ao invés de distanciamento para designar a palavra Verfremdung que aparece na obra de Brecht (como foi supracitada), pois entende que “o efeito de estranhamento não se prende a uma nova percepção ou a um efeito cômico, mas a uma desalienação ideológica”. (Patrice Pavis. 2005, p. 106).

Pina Bausch coreógrafa, bailarina e encenadora utiliza o cotidiano, as pessoas na rua, as cidades, e outros espaços urbanos em seu trabalho e é transformando o habitual e quebrando com as separações dicotômicas que traz o efeito de estranhamento. No livro “O Lamento da Imperatriz” Solange Caldeira traz uma reflexão que traduz o que foi descrito.


“… a separação  dicotômica entre artista e espectador é abolida, como também se abole a separação entre a arte e vida, o que mais tarde é levado ainda mais longe, abolindo-se a separação entre o corpo simbólico e corpo real.” (Solange Caldeira. 2009, p. 22).


Pode-se observar em seus diversos trabalhos a relação na criação de suas obras principalmente com repetição, colagem e com o efeito de estranhamento. Suas obras trazem o onírico, que pertence a seara dos sonhos e um exemplo marcante é o espetáculo Café Muller, que traz o cenário de um café, repleto de mesas cobrindo o palco.




A iluminação é a luz de fora do café. Duas bailarinas exploram o palco vestindo camisolas, uma delas (Pina Bausch) fica ao fundo enquanto outra vem a frente e aos poucos começa a dançar ao centro próximo das cadeiras. Um homem chega começa a tirar as cadeiras para que os movimentos possam ser feitos sem se esbarrarem.  E meio a este ambiente comum, cotidiano, estas mulheres surgem com suas camisolas e seus movimentos leves, delicados, “tateando o caminhar” intuitivamente, isto, é extremamente onírico e causa um doce estranhamento, levando o espectador há um lugar que certamente conhece, mas que não costuma acessar com frequência, o transformando com delicadeza.
       



O contato com a poética do estranhamento, se assim pode ser também denominado o efeito de estranhamento, é um encontro, um momento de descobertas de outras possibilidades para um teatro que traz a imagem do conhecido para o desconhecido e novamente ao conhecido, sendo este re-conhecido partindo de outros pressupostos analíticos, como fortes elementos.

Bob Wilson traz um teatro com um forte poder imagético, não existem estruturas rígidas e finais fechados ou bem elaborados. Trabalhando com movimentos diversos, câmara lenta, ritmos, a dança e percepção sensorial em seus processos criativos, ele traz o efeito de estranhamento que não se dá somente pelo conteúdo, e como diz Carlos Tonelli em “Uma reflexão sobre a atualidade da noção de jogo em Schiller”, pela própria forma que atinge, física, imageticamente (ou, psiquicamente), a platéia. Ele exige da plateia uma postura ativa, criativa, na qual os elementos plásticos não explicam o dramático, mas convivem e dialogam. 



A Arte deste encenador traz inúmeras inquietações para a plateia e certamente, suscita algo no espectador que traz a transformação de sensações, percepções, apreensões.



Em Encenações em Jogo: Experimentos de Criação e Aprendizagem do Teatro Contemporâneo com o professor Marcos Bulhões pode-se perceber o diálogo de inúmeros procedimentos de escritura cênica, partindo de múltiplos olhares, de universos diversos de alguns encenadores e suas concepções e em sequência, a vivência  e o lado empírico para a reflexão sobre um teatro pós-moderno, sobre a performance, sobre as intervenções urbanas.

No experimento/performance realizado no Teatro da Usp, as relações com estes procedimentos ficaram mais claras. A princípio foi dado um cenário motivador para as ações: A praia. Cenário este advindo do espetáculo Ein Stück, de Pina Bausch visto pelo grupo durante um de seus encontros. Este cenário foi recodificado pelos grupos em suas improvisações, devido a várias questões, uma delas, a relação com o espaço já que se buscava fazer uma performance em um espaço urbano e cotidiano da cidade.
 
Pode-se perceber, que ainda que se parta de um mesmo objeto de estudo (neste caso o espetáculo "1980, Ein Stück" de Pina Bausch) olhares, interpretações e recepções múltiplas, sempre surgirão devido também a experiência, complexidade e as suspensões poéticas de cada indivíduo. As duas performances chegaram a uma estética própria com elementos de todo o trabalho realizado, sendo que o grupo 2 seguiu a linha mais próxima dos procedimentos de Bob Wilson pela questão das imagens e do ritmo, mesmo com o elemento repetição muito presente e o outro, o grupo 1 ficou mais próximo do que Pina Bausch propunha pela questão da repetição, colagem e personalidades. Ambas, partiram do cotidiano de pessoas em “uma praia” e quebrando com este cotidiano, causaram estranhamento desde o início por romper com a estrutura e trazer ações de outros ambientes cotidianos.
Fica uma pergunta: Quando o cotidiano é transformado em uma intervenção, espetáculo ou cena a cada fragmento, ou em toda a ação em que momento o efeito de estranhamento se dá?

Veja os vídeos dos experimentos/performances realizados:





BIBLIOGRAFIAS: 


CALDEIRA, Solange Pimentel. O lamento da imperatriz: a linguagem e o espaço em Pina Bausch. São Paulo: Annablume, 2009.

DESGRANGES, Flávio. Pedagogia do Espectador. São Paulo: Hucitec, 2003.

GUINSBURG, J; FARIA, João Roberto; LIMA, Mariangela Alves de. Dicionário
do teatro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2006.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Ed. Perspectiva. São Paulo, 1999.

Riso, Eraldo Pêra. Ator e estranhamento, Brecht e Stanislavski, segundo Kusnet/ Eraldo Pêra Rizzo. – 2ª Ed. – São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2004. Editora Senac


LINK’S:


quinta-feira, 18 de agosto de 2011

postheadericon Estranhamento e Humor no Experimento Pina Bausch (por Tânia Boy)


O Experimento Pina Bausch foi criado com os alunos da pós-graduação da ECA- USP do curso Encenações em Jogo: Experimentos de Criação e Aprendizagem do Teatro Contemporâneo ano 2011 do professor e pesquisador Marcos Bulhões. O pesquisador solicitou a criação de uma cena inspirada no trabalho de Bausch. Assistimos a um fragmento de um filme do espetáculo “Praia” da coreógrafa e o usamos como ponto de partida para a criação da performance.

            Criamos partituras a partir da leitura do filme citado, mas houve ainda, a possibilidade de se valer do trabalho de Bob Wilson  também estudado no curso. As partituras criadas pelos performers foram experimentadas com a música proposta por Bulhões.

            No experimento criado o espaço proposto “uma praia” foi subvertido em diversos momentos da performance. Duas performers trouxeram o lugar “praia” para a cena. Uma vestida com muitas sobreposições de roupa e que paulatinamente se despia e se expunha ao sol, e outra vestida como uma “Pin-up”  parecia procurar algo ou alguém enquanto tomava sol. Os outros elementos presentes na cena traziam estranhamento ao lugar proposto. Estranhamento que para Pina, como destaca Cypriano (2006) em seu trabalho, “nunca gosta de uma imagem bela demais no palco, ela sempre procura encaixar algo que provoque também estranhamento.”

O elementos: carteiro, moça do mancebo, mulher do telefone mostravam ao espectador que ali não era realmente uma praia. Provocando na platéia uma estranha curiosidade em saber o que aqueles seres faziam ali.

            Mesmo as moças que tomavam sol e também a Moça do mancebo em determinado momento usavam um batom de forma não usual. Elas desenhavam em seus corpos usando o batom, retirando-o do seu uso comum.

            Em outra momento o carteiro aparece entregando cartas às moças que tomam sol. No entanto ele não as entrega de fato, mas sim, as rasga e joga os pedaços nas destinatárias das correspondências.

            O fato do carteiro entregar cartas em plena praia foge ao cotidiano e traz estranhamento ao ritual das moças que se expõe ao sol.

            Em outro momento o carteiro lê uma cartinha destinada ao Papai Noel imitando a voz de uma criança. A cena faz surgir sentimentos confusos de inocência, pois é uma criança que acredita em Papai Noel, e de ironia. Em nosso país é comum vermos no final do ano muitas crianças carentes escreverem cartas ao Papai Noel para pedirem o que lhes falta no cotidiano, como: material escolar, emprego para os pais, alimento, roupa e até mesmo a sonhada casa própria. É possível que muitas dessas crianças nem acreditem em Papai Noel, mas esperam que um “milagre” aconteça e elas ganhem algo desejado. Anualmente, o correio faz campanha para que pessoas adotem as cartas e realizem os sonhos dessas crianças.

            A cena criada traz um estranho humor, segundo Cypriano (2006), Bausch defendia o riso dizendo “É preciso rir”, a coreógrafa levava ao palco o que parecia incabível. Ela propunha usar o humor como uma estratégia para abalar certezas e torná-las palatáveis.

            Bausch afirmava:


O humor não é necessariamente relacionado ao chiste, ele é uma forma mais amável de transmitir um conteúdo que em si é mais difícil, complexo.

                                                                                                          (apud CYPRIANO 2006, p. 116)


            O tema presente na cena que é o da criança que acredita e escreve ao Papai Noel é apresentada de forma humorística na performance criando uma ambivalência na situação criada. Para Cypriano (2006, p. 117)


A ambivalência é usada por Bausch como estratégia para abordar temas complexos e levá-los ao palco de forma discreta. Imerso entre a delícia e a desgraça, cabe ao espectador emitir o seu juízo de valor.

           É o espectador da cena que se posicionará quanto ao tema apresentado na performance, concordando ou discordando com a situação que mostra os problemas sociais ainda existente em nosso país.
 

Referências bibliográficas


CYPRIANO, Fábio. (2006) Pina Bausch.  Cosac&Naify Edições. São Paulo.
terça-feira, 16 de agosto de 2011

postheadericon A COLAGEM NO PROCESSO CRIATIVO DE PINA BAUSCH E O ENSINO DE TEATRO CONTEMPORÂNEO

Por Katia Lazarini

“Pina Bausch criou seu próprio universo teatral. Desenvolveu um vocabulário para a iluminação de palco, gestual, movimento, cenário e figurinos, formando, assim, uma linguagem teatral completa”. [1]

A Colagem é um procedimento de composição artística, introduzida pelos cubistas nas artes plásticas no início do século XX, cuja técnica consiste em colar materiais heterogêneos advindos de diversas fontes.  Esse termo, emprestado da pintura, é hoje bastante utilizado como princípio de criação no fazer teatral contemporâneo, aqui os elementos da linguagem teatral – cenário, figurino, texto, corpo, espaço, luz, música – ganham autonomia e se reorganizam através: da justaposição, da sobreposição, da multiplicação das vozes, montando uma espécie de quebra cabeça cênico no qual cada peça pode ser ligada a qualquer outra, resignificando assim o todo a cada novo encaixe. Esse procedimento rompe com a linearidade aristotélica da “causa e efeito, onde a unidade de ação deve desenrolar-se a fim de revelar o destino/efeito, fruto das ações/causa das personagens.

Nesses trabalhos interativos dos anos sessenta, “[t]écnicas de colagem eram usadas, ao invés de temas centrais[;](...) modelos de sons ou de movinetos eram usados em repetição para criar efeitos hipnóticos(...) [C]oreográficos agora estavam colocando seu foco em movimentos de pedestres e observando relações básicas das pessoas ditas normais.[2]

Para exemplificar o procedimento da colagem na composição cênica contemporânea escolhemos trechos de vídeos de espetáculos de quatro encenadores da atualidade. Dois representantes do teatro: Bob Wilson e Enrique Diaz. E duas representantes da dança: Pina Bausch e Lia Rodrigues.
No espetáculo Shakespeares Sonette, Bob Wilson cola a gestualidade dos atores à uma partitura musical. Já na encenação Gaivota – tema para um conto curto, de Enrique Diaz com a Cia. dos Atores, o cenário é feito de cadeiras e objetos não representam mais o que são. Uma planta passa a ser um cérebro, a mancha de batom na cabeça de um ator torna-se sangue, aqui a colagem transborda os significados. Em Cravos, Pina Baush forra o palco com a flor que dá nome ao espetáculo e os bailarinos dançam em cima dessa paisagem provocando pouco a pouco a destruição do belo jardim. As ações são trabalhadas simultaneamente, coladas em um quadro cênicos onde a gestualidade compõem as sutilezas. A Cia. de Dança de Lia Rodrigues encena Pororoca, espetáculo de dança que nasceu do encontro entre os artistas/bailarinos e a comunidade de Nova Holanda, em Maré no Rio de Janeiro, onde a Cia. tem uma sede.
 Podemos notar nos exemplos acima a utilização do procedimento da colagem pela natureza híbrida dos materiais que compõem a cena e pela multiplicidade do discurso que a compõe. Notamos ainda que a cena contemporânea não se preocupa em trazer um significado predefinido, mas proporcionar uma experiência de encontro entre obra e platéia. Exige-se aqui um espectador ativo, que trazendo seu repertório psicofísico-emocional complementa a obra significando e resignificando as imagens apresentadas ao longo do espetáculo. O interessante nesse tipo de composição é observar como a multiplicidade trazida por cada parte entra em fricção com o todo, transbordando os sentidos e tornando impossível o reconhecimento das causas e dos efeitos.
Com o intuito de investigar as relações entre a cena contemporânea e o ensino de teatro decidimos tomar como modelo de estudo o procedimento da colagem aplicado por Pina Bausch em seus processos criativos.
Diretora do Tanztheater Wuppertal entre 1973 e 2009, Bausch desenvolveu a dança expressionista alemã ao organizar sua construção poética mesclando as linguagens da dança e do teatro. A partir dessa poética desenvolveu o famoso método de perguntas/alavancas que serviam para a criação de respostas/cenas. Esse sistema permite que a memória de cada bailarino/ator seja o elemento articulador do processo criativo. Cada resposta vem do referencial vivenciado sócio culturalmente pela história de cada corpo e ao trabalhar com pessoas de diferentes nacionalidades, Bausch amplia o repertório gestual de todo o grupo.
No trabalho de Pina a colagem aparece como principal estrutura para a composição da encenação. Ela reúne os materiais produzidos pelos bailarinos/atores durante os ensaios, seleciona, monta e define a última edição. A matéria prima  é de todos, a montagem é dela. “Se você coloca uma determinada ação ao lado de outra, elas se transformam mutuamente e as suas direções também. Quando todas estão juntas cada uma também se altera.” [3]
Ao observarmos o procedimento da colagem no processo criativo de Pina Bausch podemos decupá-lo em 4 etapas:

Primeira Etapa: A encenadora lança questões, frases, enunciados aos quais os bailarinos devem responder com gestos, textos, movimentos. Nesta etapa Pina vai criando o ambiente para que o tema se instaure e se ramifique através das associações feitas pelos bailarinos/atores.

Segunda Etapa: O grupo produz materiais cênicos. Novas questões são lançadas pela Pina. O tema se desdobra em ramificações.

Terceira Etapa: A encenadora realiza a seleção de recortes do material produzido. Monta os recortes selecionados em pequenas sequências.

Quarta Etapa: Bausch cola as pequenas sequências, organizando dessa forma a estrutura da encenação.

Podemos dizer que o processo criativo de Pina Bausch é calcado no repertório gestual trazido por cada bailarino/ator e na forma como a encenadora recorta e cola todo material, criando o que poderíamos chamar de uma rede hipertextual ao alinhavar diversas informações de diferentes tessituras. O termo hipertexto inventado por Theodore Nelson, seria a idéia de uma escrita/leitura não linear em um sistema de informática, onde a seleção se dá por livre associação. Ao examinarmos o processo criativo de Pina Bausch à luz do conceito de Nelson podemos ousar dizer que o mesmo é hipertextual, uma vez que é feito por partes e estas estabelecem atualizações a cada nova justaposição, a cada sobreposição, gerando e reformulando os significados.

Tecnicamente, um hipertexto é um conjunto de nós ligados por conexões. Os nós podem ser palavras, páginas, imagens, gráficos ou partes de gráficos, sequências sonoras, documentos complexos que podem eles mesmos ser hipertextos. Os itens de informação não são ligados linearmente, como em corda com nós, mas cada um deles, ou a maioria, estende suas conexões em estrela, de modo reticular.” [4]

A obra resultante desse processo obviamente não corresponde ao modelo dramático e rompe totalmente com a linearidade de uma narrativa textocêntrica. Em uma rede não importa o que veio antes ou depois, o presente aparece interligado pelo passado e pelo futuro, misturando os fatos e os organizando através de outras lógicas.
Ao trazermos o modelo de colagem utilizado por Pina Bausch em seus processos criativos e a idéia de leitura/escrita hipertual de Theodore Nelson para a sala de aula podemos estabelecer uma ponte entre o fazer teatral contemporâneo e o ensino de teatro.  Esse sistema permite que cada participante traga suas referências para o processo, utilizando-se de sua memória corporal como ponto de partida para a criação artística. Cada corpo acrescenta sua história, suas experiências, compondo dessa forma um mosaico de associações, criando uma rede de conexões acerca de um determinado tema. Tal procedimento aplicado ao ensino de teatro possibilita que iniciantes possam entrar em contato com essa forma de composição contemporânea, sem necessariamente passar pelo modelo dramático.
A dança como aliada para ensino de teatro contemporâneo parece trazer a tona as questões do corpo na atualidade, sua presença, beleza e qualidades gestuais. O procedimento de colagem, junto ao sistema de perguntas e respostas formulado por Pina Baush quando aplicado com alunos iniciantes pode promover a apreensão da linguagem teatral sem impor uma hierarquia entre os elementos.

...é na dança que as novas imagens corporais podem ser consideradas de modo mais claro. A dança é radicalmente caracterizada por aquilo que se aplica ao teatro pós-dramático em geral: ela não formula sentido, mas articula energia; não representa uma ilustração, mas uma ação. Tudo nela é gesto. [...] A realidade própria das tensões corporais, livre de sentido, toma o lugar da tensão dramática. O corpo parece desencadear energias até então desconhecidas ou secretas... [5]

Após investigar as relações entre a cena contemporânea e o ensino de teatro tendo como modelo o procedimento da colagem aplicado por Pina Bausch em seus processos criativos, concluo que ao trabalharmos na fronteira entre as linguagens cênicas da dança e do teatro estaremos estimulando nossos alunos a experienciar formas de composição utilizada pelos artistas da cena contemporânea. E ao utilizarmos o procedimento da colagem com alunos iniciantes estaremos promovendo a autonomia dos participantes que se apropriarão os meios de produção do material cênico.
Finalizo então com a descrição de dois jogos para serem desenvolvidos em sala de aula ou ensaio, aos interessados no estudo da cena contemporânea:

  1. Jogo Verbo-Imagem
*O professor deve ter em mãos cartas com diferentes verbos escritos, como por exemplo: Amar, viajar, navegar, espirrar, deslizar e etc.

O grupo caminha pelo espaço até que o professor sorteie um verbo e fale em voz alta aos alunos que devem imediatamente criar uma imagem com o corpo/estátua a partir da associação feita. O procedimento é repetido por quatro vezes, ou seja, cada participante terá quatro imagens armazenadas. O grupo é divido em dois e através do procedimento da colagem devem construir uma paisagem/imagem utilizando as estátuas construídas individualmente na primeira parte do exercício.

  1. Jogo Verbo-Imagem 2
O grupo é dividido em dois e todos caminham pelo espaço até que o professor sorteie um verbo e fale em voz alta aos alunos que devem construir imediatamente uma imagem coletiva. O procedimento é repetido por quatro vezes, ou seja, cada subgrupo terá quatro imagens armazenadas. Em um segundo momento os subgrupos devem, através do procedimento da colagem, organizar as imagens em uma ordem, compondo assim uma pequena sequência cênica.


 BIBLIOGRAFIA

FERNANDES, Ciane. Pina Baush e o Wuppertal Dança-Teatro repetição e transformação. São Paulo: AnnaBlume Editora, 2007.
CYPRIANO, Fábio. Pina Bausch. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
KATZ, Helena. Pina Bausch. Jornal de Tarde. SP: 11/12/1980.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
LÉVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência. São Paulo: Editora 34, 1993.
__________. O que é virtual. São Paulo: Editora 34, 1996.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Editora Perspectiva, 1996.


[1]WILSON, Robert. In CYPRIANO, Fábio. Pina Bausch. São Paulo: Cosac Naify, 2005. p.07.
[2] CANTON, Katia. In FERNANDES, Ciane. Pina Baush e o Wuppertal Dança-Teatro repetição e transformação. São Paulo: AnnaBlume Editora, 2007. p.23.
[3]KATZ, Helena. Pina Bausch. Jornal de Tarde. SP: 11/12/1980. p.14.
[4] LÉVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência. São Paulo: Editora 34, 1993. p. 33.
[5] LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p.339,340.

About Me

Acupuntura Poética
Ver meu perfil completo

Seguidores

Tecnologia do Blogger.