sexta-feira, 12 de agosto de 2011

postheadericon ESTATUÁRIA (Ramiro Silveira)


            Termo inspirado na estatuária plástica de Meyerhold[1] e como ela foi percebida a partir do espetáculo A Morte de Tintagiles. Refere-se a construção de elementos estruturantes que originam conexões facilitadoras do processo de criação teatral.
            A estatuária plástica em Meyerhold era desenvolvida em roteiros curtos, transformando-se inclusive em pequenas pantomimas e caracterizando-se como “a redução de uma obra dramática a um esquema (que) permitia analisar os fundamentos da tradição teatral e observar a estrutura da peça, as relações e funções das personagens, sem, contudo, definir a forma de representar”. (THAÍS:2010, pág.149)[2]. A estatuária meyerholdiana, portanto, é a base para sua prática do étude. Esta terminologia[3] relaciona-se a maneira de conduzir um grupo de atores em função da forma de abordar um tema, com elementos físicos advindos de variadas referências. São códigos oriundos de diversas fontes, a serviço da formação de vocabulário para o ator e conseqüentemente para o espetáculo.  O ponto central dos études é fazer com que o ator, durante o processo de ensaio, esteja apto a experimentar uma nova abordagem da realidade, onde o corpo é colocado em evidência e o intelecto suplantado pelo rigor físico da forma. O ator não é mais visto somente como um artista, mas como a própria obra de arte. A idéia de que a imaginação do espectador completará de modo criativo as alusões feitas em cena, trazem as experiências de Meyerhold à luz do que convencionamos chamar de teatralidade. A cumplicidade permite que percebamos a convenção, tornando-nos, como espectador, parte ativa e fundamental desta. A quebra com o teatro naturalista, principal efeito das experiências meyerholdiana, abre brechas à fantasia e multiplica possibilidades de leitura, fator fundamental em inúmeras vertentes do fazer teatral que se diversificaram a partir de então. O teatro essencialmente ‘teatral’, que bebe da Commedia Dell’Arte, do Teatro de Feira, do Circo, da Tarantella; traz algo familiar e estranho ao mesmo tempo. A estilização liga-se a certa verossimilhança e o grotesco aparece como uma segunda etapa desta via, rompendo com o analítico. O fantástico se aproxima através do jogo e o cotidiano supera o próprio cotidiano. Gèrard Abensour considera que a principal lição do Teatro-Estúdio de Meyerhold  foi o enaltecimento “do papel do encenador, como aquele que, tal como um chefe de orquestra, vela pela coerência do conjunto visando um projeto comum: faz com que a alma do espectador entre em comunicação com a do poeta pela mediação do jogo teatral”[4] (THAIS: 2009 p.26). Meyerhold acredita no desenvolvimento emocional do corpo. O intelecto é importante, mas é a partir do corpo que o ator realmente pensa. O corpo age, portanto, como transformador do subjetivo em objetivo. A importância dos études e do heterogêneo conjunto de experimentações cênicas realizadas por Meyerhold, reside na importância atribuída ao processo. Quanto mais detalhamento instrumental mais superfície de apoio para a jornada do artista. É neste processo que o ator abre possibilidades de re-significação do texto. As vias expressivas dialogam com a obra e a ampliação deste repertório (como por exemplo, a possibilidades de construção de novos corpos ou mesmo formas corporais através dos études), ampliam a exploração do material base da encenação: texto, figurino, cenário, luz, som, etc. Os études ativam o ator como motores psicofísicos, “estruturas ocas” [5] a serem preenchidas pelos humores que darão corporeidade expressiva (psicofísica) ao personagem. Nos études o movimento deve respirar, criando espaços para a emanação psicofísica.
            A estatuária também está relacionada à partitura cênica de Eugênio Barba. Neste caso como uma passagem fluida que passa por diversas posturas corporais executando uma ação.
           Os trabalhos práticos de encenadores como Robert Wilson trazem em sua origem diversas referências a estatuária, utilizada em processo e muitas vezes mantidas no espetáculo. Estas se caracterizam como ferramentas de trabalho para o ator/performance baseadas na fixação de posturas corporais inspiradas em elementos relacionados ao objetivo pretendido no processo. Funciona como um artifício plástico facilitador e está imbuído de significado expressivo e motivador de impulso de criação.
                Meu trabalho pessoal como encenador utiliza a estatuária como uma ‘base sólida’ que auxilia o ator a traçar uma jornada expressiva, calcada na narrativa que pretende realizar, a partir da construção de um esqueleto vivo de expressividade a ser reduzido, trabalhado, esculpido de acordo com a forma de linguagem pretendida. Vários jogos e exercícios podem ser utilizados para a composição destas estatuárias (partituras), dentre eles destaco o exercício da ‘Cena Ambiental e Simultaneidade’. Este busca a desconstrução do gesto cotidiano, a partir de referências, para alcançar o gesto estranhado. Estas referências podem advir de trabalhos observados em vídeo (neste caso espetáculos de Pina Bausch e Bob Wilson) ou qualquer outro elemento escolhido pelo diretor como fonte imagética ou sensorial, relacionada ao trabalho cênico pretendido. Uma vez determinada a série estatuária, esta poderá incorporar texto, alimentar-se de diferentes motivações rítmicas a partir de sons e música, ou mesmo banhar-se de variadas motivações de luz, modificando sensações e climas. A mesma, também dependendo do foco do trabalho, será reduzida ou ampliada, podendo inclusive voltar ao gesto cotidiano original. Ao final de um ciclo de construção/desconstrução poderemos encontrar um ator sentado calmamente em cena, tomando um chá e divagando em um monólogo Tchekhovskiano, imbuído, porém, da base sólida estatuária que faz com que sensações permaneçam e preencham sua alma.
            A ‘estatuária’, portanto, é na prática um princípio de instrumentalização do trabalho do ator para que este construa posturas corporais plausíveis de reverberação nas mais diferentes práticas expressivas. Um ‘porto seguro’ referencial que poderá servir como base e estímulo psicofísico na construção de personagens e relações. Um artifício técnico de auxílio que permite ao ator mergulhar na complexidade do processo teatral, criando atalhos orgânicos que facilitam o acesso a estímulos, requisito básico do acontecimento teatral.
“As raízes vivas de um espetáculo não são um texto literário, uma história a ser contada ou minhas intenções de diretor, mas uma qualidade particular das ações físicas e vocais do ator: presença, bios cênico, organicidade, persuasão sedutora, corpo-em-vida.” (BARBA:2010, p.59).[6]




           



[1] “A condução do diretor gerava entusiasmo pelo seu caráter inovador e inspirado pelos pintores primitivos. Explorava-se em cena, pela primeira vez, o poder expressivo do corpo do ator. A “estatuária plástica” foi experimentada, não como cópia das pinturas, mas a partir da imaginação criativa do diretor que pretendia concentrar o ator – física e mentalmente – através das poses, do desenho do gesto e da ênfase do perfil do corpo.” (THAÍS:2010, pág.23).
[2] THAÍS, Maria. Na Cena do Dr. Dapertutto: poética e pedagogia em V.E. Meierhold: 1911 a 1916. São Paulo: Perspectiva, 2010.
[3]  Meyerhold construiu um conjunto de 16 études que foram as bases da biomecânica. Estes études foram escolhidos dentre um eclético conjunto de fontes, incluindo o circo, teatro chinês, teatro japonês e os esportes, e formaram a base de seu extenso vocabulário de movimentos.
[4] Vsevolod Meyerhold ou l’invention de La mise-en-scène, p.97.
[5] Matteo Bonfitto, termo citado em aula.
[6] BARBA, Eugenio.  Queimar a Casa. São Paulo: Perspectiva, 2010.

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