segunda-feira, 15 de agosto de 2011
Intervenção e ressignificação do espaço urbano (por Natalia Vianna)
Quando buscava um tema para nortear a escrita deste hipertexto, dentre as várias inquietações que permeiam minha prática enquanto artista e educadora, a cidade é sempre o ponto mais forte. Sempre me encantei com a dinâmica e a arquitetura urbana e sempre me indignei, como tantos, com as contradições tão gritantes e absurdidades que se tornaram normais para todos nós.
E como a arte se encaixa neste cenário urbano? Ao caminhar pelas ruas de São Paulo encontramos diversas manifestações artísticas nas mais variadas linguagens. Mas como essas linguagens relacionam-se com este cenário urbano?
O percurso das aulas da disciplina Encenações em Jogo, com a proposta de se pensar uma intervenção, partindo do filme “O Lamento da Imperatriz” (veja aqui alguns trechos do filme) , de Pina Bausch, aliado ao meu trabalho com o Coletivo Pi, grupo de pesquisa e criação em teatro e intervenção urbana do qual faço parte, fizeram com que mais inquietações viessem à tona, trazidas tanto pela pelas aulas como pela própria prática com intervenções urbanas.
Se pensarmos na cidade historicamente, encontraremos mudanças bruscas e sutis, das mais variadas – seja na sua arquitetura, na sua construção social, nas relações interpessoais, em seus habitantes. Se em tempos anteriores a rua já foi um espaço de encontro, onde vizinhos se cumprimentavam, crianças brincavam, pessoas passeavam, se reuniam em praças e se divertiam, hoje, não vemos a mesma imagem. A evolução da cidade tornou a rua o lugar da violência, dos crimes, do medo, da insegurança, do não relacionamento, do andar rápido, da pressa, da passagem forçada de quem preferiria não passar por ali.
E com isso, o espaço privado é tido como solução perfeita: condomínios fechados de alta segurança, shoppings centers para o lazer e passeio, compras com entrega delivery, para que ninguém tenha que sair do seu espaço. Com essa valorização do espaço privado, o freqüentador ou habitante da rua só pode estar na marginalidade: o mendigo, a prostituta, o ambulante (e por que não o artista de rua?).
Imagem 1 |
Em “O Lamento da Imperatriz”, Pina Bausch traz a cidade mais do que como cenário, mas como protagonista (CALDEIRA, 2009), em meio a situações cotidianas deslocadas, repetições, estranhamentos.
Imagem 2 |
Gostaria de destacar, neste filme, algumas cenas que deslocam o espaço privado da intimidade para o espaço urbano, interferindo na dinâmica da cidade, como a mulher que caminha de calcinha e depois fuma tranquilamente sentada em uma poltrona em um cruzamento no trânsito (imagens 1 e 2) e a rápida imagem de um homem fazendo a barba no meio fio.
Narrativas de Cecília, Coletivo Pi, Santa Cecília, 2011. |
Narrativas de Santana, Coletivo Pi, Santana, 2011. |
Neste caso, a intervenção depende da curiosidade ou interesse dos transeuntes. Para que o livro seja preenchido com histórias daquele bairro, é preciso que as pessoas que circulam por aquele local deixem alguns minutos de seu tempo ali naquela sala de estar. No entanto, o que justamente causa essa aproximação é a imagem criada no espaço urbano: uma poltrona, tapete, abajur, uma mulher em trajes confortáveis – todo esse universo da casa é deslocado para a rua, criando uma situação inusitada e mais ainda, uma imagem poética que fica gravada na mente até mesmo dos que não pararam. Como cada intervenção é única, o nome dado a cada uma varia de acordo com o bairro – Narrativas de Miguel (São Miguel Paulista), de Madalena (Vila Madalena) etc.
Abaixo, um vídeo com trechos de algumas intervenções de Narrativas de São Paulo.
Nas cenas citadas do filme de Pina Bausch, a interação com os transeuntes não era necessária – e nem o objetivo era a intervenção em si naquele determinado momento, mas sim o filme como produto final – no entanto, a imagem criada com as contraposições público/privado por si só tem força poética e interfere artisticamente na rotina daquele espaço.
O espaço privado, mesmo que comum a todos, quando deslocado e tornado público, gera um estranhamento e um desconforto. Essa quebra na rotina da cidade, um lapso poético no meio da correria cotidiana, chama a atenção, mesmo que por segundos ou por horas e horas, para aquele espaço, seus habitantes, sua organização. A intervenção não altera apenas o dia-a-dia de quem se relaciona com o artista, mas, com sua força enquanto imagem, reinventa aquele espaço e interfere em sua rotina, suscitando novas percepções.
A intervenção urbana traz consigo uma proposta mais vivencial e efêmera, que dialoga com o mundo contemporâneo. Podemos identificar, aí, um “papel social da arte contemporânea como experiência e vivência, como construção intersubjetiva, interfacetada”. Não se trata de construir espaços meramente ilusórios, mas “criar espaços relacionais, dialógicos, no contexto da própria realidade”. (ARANTES, 2007, p. 169)
Referências bibliográficas:
ANDRÉ, Carminda Mendes. Teatro e resistência (ou Rua, espaço de trocas). XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH: Como o feminismo transformou a produção do conhecimento histórico no Brasil? Universidade de São Paulo, 2011.
ARANTES, Priscilla. Espaço urbano, investigação artística e a construção de novas terrritorialidades. In: MEDEIROS, Maria Beatriz; MONTEIRO, Marianna F.M. (org.) Espaço e Performance. Brasília: UNB, 2007.
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Abril Cultural – Os Pensadores, 1984.
CALDEIRA, Solange Pimentel. O Lamento da Imperatriz: a linguagem em trânsito e o espaço urbano em Pina Bausch. São Paulo: Annablume, Belo Horizonte: Fapemig, 2009. (link para a tese de doutorado)
COLETIVO PI. Narrativas de São Paulo: cidade, memória e poesia. <http://coletivopi.blogspot.com/p/narrativas-de-sao-paulo.html>
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