segunda-feira, 22 de agosto de 2011

postheadericon ESTRANHAMENTO OU EFEITO DE ESTRANHAMENTO

(Por Daniele Cristina Oliveira)

O verbete Estranhamento é um termo utilizado como um procedimento de escritura cênica que traz para a cena um diálogo entre elementos. Este diálogo se dá através de um embate dialético, propondo para o espectador uma postura ativa e completamente presente, uma postura crítica e não habitual e desconexa do que acontece na cena, mas viva e transformadora.

Estranhar, afastar, admirar, assombrar, espantar-se, sentir pasmo, desconforto, repulsa, aversão, curiosidade, distanciamento diante do conhecido ou do que não se espera, para a partir disso, sentir-se vivo,  ativo, olhando, percebendo o mundo, integrado nos fenômenos da natureza e da arte. 

Estranhamento, Ostranenie, Verfremdung, Weirdness, Etranger podem ter a mesma tradução, porém, não o mesmo significado e significante. A palavra traz em si diferentes imagens, sonoridades, seus diversos significantes isso se percebe não somente na língua mãe, mas quando se vê também em diferentes línguas. De certa forma tudo o que é desconhecido causa um certo estranhamento, desconforto e só após o reconhecimento que esta sensação se esvai, mas quando algo habitual gera o estranhamento, acontece algo ainda mais profundo, que talvez seja uma relação de inversão do conhecido, transformando-o para gerar um outro tipo e grau de análise.

Nos estudos da semiótica, Charles Sanders Pierce traduz muito bem esta questão do conhecimento explícito que se chega ao reconhecimento usando três categorias: Primeiridade, Secundidade e Terceiridade.

          Descrevendo rapidamente o estudo da semiótica na visão de Pierce:


Na primeiridade acontece a compreensão superficial do objeto, é o encontro, a qualidade de relação e consciência imediata, há a relação de frescor e liberdade.

Na secundidade acontece uma leitura e uma compreensão mais profunda do objeto e a relação é mais íntima, há um diálogo e um possível embate.

Na terceiridade a relação é a da camada de pensamentos, dos signos, é a interpretação, representação do objeto no mundo ou, a interpretação acerca do mundo conectado à própria experiência de vida do sujeito.

Quando esta relação se dá, a sensação de estranhamento começa a se dissipar por se ter uma relação íntima, de representação, interpretação, diálogo e apreensão da coisa. E a obra de arte que traz o efeito de estranhamento, utiliza do conhecido, do cotidiano, do que se está acostumado e transforma a coisa, o objeto para que o sujeito se distancie e assuma uma postura política, crítica, ligado com o que está diante dele: a obra.


A palavra estranhamento ou Ostranenie foi um termo utilizado por Victor Chklovski ((1893–1984) considerado o pai do formalismo russo.) em seu trabalho “A Arte como procedimento” publicado em 1917.
Para Chklovski este termo seria o efeito criado pela obra de arte para distanciar o público causando a sensação de estranhamento em relação ao modo comum como apreendemos o mundo e a arte, e a partir disso permitiria que o público entrasse em uma outra dimensão que seria visível através do olhar artístico e ou estético.


Para Chklovski,

“A finalidade da arte é dar uma sensação do objecto como visão e não como reconhecimento; o processo da arte é o processo de singularização ostranenie - (estranhamento) dos objectos e o processo que consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O acto de percepção em arte é um fim em si e deve ser prolongado; a arte é um meio de sentir o devir do objecto, aquilo que já se ‘tornou’ não interessa à arte.”


Distanciar, causar estranhamento no âmbito da cena teatral é tirar o espectador de um lugar conhecido, natural e fazer brotar a sensação de espanto, curiosidade e desconhecimento para que ele tenha uma postura crítica, tirando-o do estado amorfo criando o estado ativo e conectado com a obra. O estranhamento é uma forma de questionar o processo de trazer a naturalização que continua presente em nosso olhar.

O efeito de estranhamento (ou distanciação) consiste em uma prática que permite tirar a naturalidade da cena teatral, o rompimento da quarta parede e a sua utilização requer uma mudança no que se pode denominar habitual e cotidiano.




V-Effekt ou Efeito V do alemão Verfremdungseffekt que em francês effet de distanciation é uma elaboração de Bertlot Brecht que pode ser traduzido como “efeito de estranhamento” ou “efeito de distanciamento” e ainda como “efeito de desilusão”. Para Brecht distanciar é “historicizar” e o “desconhecido desenvolve-se somente a partir do conhecido”, ou seja, você só pode se distanciar de algo que você conhece e que lhe é cotidiano.  Então, partindo do que podemos chamar de conhecido, habitual, cria-se o “desconhecido”, o estranho.
           
Veja dois exemplos do jogo do guia com gesto estranhado, a partir de exercícios realizados com o grupo dos alunos da Pós-Graduação em Artes Cenicas da USP.





No livro A Pedagogia do Espectador, Flávio Desgranges citando Benjamim coloca a visão de como o Teatro deveria apresentar as situações ao espectador:


“O Teatro deveria apresentar situações de maneira tal que proporcionassem ao espectador o estranhamento da situação habitual, a percepção de uma vivência alienada, e despertassem nele a vontade de intervir, de tomar para si a condução de suas atitudes.(...) Distanciado do habitual, o espectador descobriria a verdadeira face do familiar, reconhecendo o conhecido.” (Desgranges. 2003, p. 94).


Esta relação de se distanciar do habitual para refletir sobre o que se vê, traz ao espectador uma outra percepção diante da realidade, uma percepção e descobertas das múltiplas possibilidades para uma mesma coisa, pois ele não se deixa envolver completamente impossibilitando o raciocínio, ele está ativo. Desgranges ainda coloca que o estranhamento do cotidiano traria questões que costumeiramente seriam naturais, mas que após este efeito causariam no espectador certa surpresa e “assombro diante da realidade cotidiana”, para ele este assombro é “a tomada de consciência e percepção da dimensão social do acontecimento, a descoberta das muitas possibilidades de desdobramento e desfecho para o mesmo fato”. (Desgranges. 2003. p. 95).

O Prof. Eduardo Montagnari coloca uma contribuição de Brecht no texto Naturalização e Estranhamento e nisso pode-se observar o quão ativo e consciente é o espectador partindo deste termo:


Estranhem o que não for estranho
Tomem por inexplicável o habitual
Sintam-se perplexos ante o cotidiano
(...)
Façam sempre perguntas
Caso seja necessário
Comecem por aquilo que é mais comum
(...)
Para que nada seja considerado imutável
Nada, absolutamente nada,
Nunca digam: isso é natural!


Este é um exemplo sobre a questão da pedagogia de um teatro para um espetáculo que o espectador está completamente ativo, uma postura política e ativa diante do objeto e da obra, de alguém que está conectado, que dialoga e debate com o que é proposto.

Em Portugal a tradução de estranhamento se dá como efeito de distanciação. No Brasil, o uso mais comum é o efeito de distanciamento, mesmo que alguns autores e estudiosos usem o efeito de estranhamento. Para Patrice Pavis, o melhor a se aplicar é a idéia de estranhamento ao invés de distanciamento para designar a palavra Verfremdung que aparece na obra de Brecht (como foi supracitada), pois entende que “o efeito de estranhamento não se prende a uma nova percepção ou a um efeito cômico, mas a uma desalienação ideológica”. (Patrice Pavis. 2005, p. 106).

Pina Bausch coreógrafa, bailarina e encenadora utiliza o cotidiano, as pessoas na rua, as cidades, e outros espaços urbanos em seu trabalho e é transformando o habitual e quebrando com as separações dicotômicas que traz o efeito de estranhamento. No livro “O Lamento da Imperatriz” Solange Caldeira traz uma reflexão que traduz o que foi descrito.


“… a separação  dicotômica entre artista e espectador é abolida, como também se abole a separação entre a arte e vida, o que mais tarde é levado ainda mais longe, abolindo-se a separação entre o corpo simbólico e corpo real.” (Solange Caldeira. 2009, p. 22).


Pode-se observar em seus diversos trabalhos a relação na criação de suas obras principalmente com repetição, colagem e com o efeito de estranhamento. Suas obras trazem o onírico, que pertence a seara dos sonhos e um exemplo marcante é o espetáculo Café Muller, que traz o cenário de um café, repleto de mesas cobrindo o palco.




A iluminação é a luz de fora do café. Duas bailarinas exploram o palco vestindo camisolas, uma delas (Pina Bausch) fica ao fundo enquanto outra vem a frente e aos poucos começa a dançar ao centro próximo das cadeiras. Um homem chega começa a tirar as cadeiras para que os movimentos possam ser feitos sem se esbarrarem.  E meio a este ambiente comum, cotidiano, estas mulheres surgem com suas camisolas e seus movimentos leves, delicados, “tateando o caminhar” intuitivamente, isto, é extremamente onírico e causa um doce estranhamento, levando o espectador há um lugar que certamente conhece, mas que não costuma acessar com frequência, o transformando com delicadeza.
       



O contato com a poética do estranhamento, se assim pode ser também denominado o efeito de estranhamento, é um encontro, um momento de descobertas de outras possibilidades para um teatro que traz a imagem do conhecido para o desconhecido e novamente ao conhecido, sendo este re-conhecido partindo de outros pressupostos analíticos, como fortes elementos.

Bob Wilson traz um teatro com um forte poder imagético, não existem estruturas rígidas e finais fechados ou bem elaborados. Trabalhando com movimentos diversos, câmara lenta, ritmos, a dança e percepção sensorial em seus processos criativos, ele traz o efeito de estranhamento que não se dá somente pelo conteúdo, e como diz Carlos Tonelli em “Uma reflexão sobre a atualidade da noção de jogo em Schiller”, pela própria forma que atinge, física, imageticamente (ou, psiquicamente), a platéia. Ele exige da plateia uma postura ativa, criativa, na qual os elementos plásticos não explicam o dramático, mas convivem e dialogam. 



A Arte deste encenador traz inúmeras inquietações para a plateia e certamente, suscita algo no espectador que traz a transformação de sensações, percepções, apreensões.



Em Encenações em Jogo: Experimentos de Criação e Aprendizagem do Teatro Contemporâneo com o professor Marcos Bulhões pode-se perceber o diálogo de inúmeros procedimentos de escritura cênica, partindo de múltiplos olhares, de universos diversos de alguns encenadores e suas concepções e em sequência, a vivência  e o lado empírico para a reflexão sobre um teatro pós-moderno, sobre a performance, sobre as intervenções urbanas.

No experimento/performance realizado no Teatro da Usp, as relações com estes procedimentos ficaram mais claras. A princípio foi dado um cenário motivador para as ações: A praia. Cenário este advindo do espetáculo Ein Stück, de Pina Bausch visto pelo grupo durante um de seus encontros. Este cenário foi recodificado pelos grupos em suas improvisações, devido a várias questões, uma delas, a relação com o espaço já que se buscava fazer uma performance em um espaço urbano e cotidiano da cidade.
 
Pode-se perceber, que ainda que se parta de um mesmo objeto de estudo (neste caso o espetáculo "1980, Ein Stück" de Pina Bausch) olhares, interpretações e recepções múltiplas, sempre surgirão devido também a experiência, complexidade e as suspensões poéticas de cada indivíduo. As duas performances chegaram a uma estética própria com elementos de todo o trabalho realizado, sendo que o grupo 2 seguiu a linha mais próxima dos procedimentos de Bob Wilson pela questão das imagens e do ritmo, mesmo com o elemento repetição muito presente e o outro, o grupo 1 ficou mais próximo do que Pina Bausch propunha pela questão da repetição, colagem e personalidades. Ambas, partiram do cotidiano de pessoas em “uma praia” e quebrando com este cotidiano, causaram estranhamento desde o início por romper com a estrutura e trazer ações de outros ambientes cotidianos.
Fica uma pergunta: Quando o cotidiano é transformado em uma intervenção, espetáculo ou cena a cada fragmento, ou em toda a ação em que momento o efeito de estranhamento se dá?

Veja os vídeos dos experimentos/performances realizados:





BIBLIOGRAFIAS: 


CALDEIRA, Solange Pimentel. O lamento da imperatriz: a linguagem e o espaço em Pina Bausch. São Paulo: Annablume, 2009.

DESGRANGES, Flávio. Pedagogia do Espectador. São Paulo: Hucitec, 2003.

GUINSBURG, J; FARIA, João Roberto; LIMA, Mariangela Alves de. Dicionário
do teatro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2006.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Ed. Perspectiva. São Paulo, 1999.

Riso, Eraldo Pêra. Ator e estranhamento, Brecht e Stanislavski, segundo Kusnet/ Eraldo Pêra Rizzo. – 2ª Ed. – São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2004. Editora Senac


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