terça-feira, 16 de agosto de 2011

postheadericon A COLAGEM NO PROCESSO CRIATIVO DE PINA BAUSCH E O ENSINO DE TEATRO CONTEMPORÂNEO

Por Katia Lazarini

“Pina Bausch criou seu próprio universo teatral. Desenvolveu um vocabulário para a iluminação de palco, gestual, movimento, cenário e figurinos, formando, assim, uma linguagem teatral completa”. [1]

A Colagem é um procedimento de composição artística, introduzida pelos cubistas nas artes plásticas no início do século XX, cuja técnica consiste em colar materiais heterogêneos advindos de diversas fontes.  Esse termo, emprestado da pintura, é hoje bastante utilizado como princípio de criação no fazer teatral contemporâneo, aqui os elementos da linguagem teatral – cenário, figurino, texto, corpo, espaço, luz, música – ganham autonomia e se reorganizam através: da justaposição, da sobreposição, da multiplicação das vozes, montando uma espécie de quebra cabeça cênico no qual cada peça pode ser ligada a qualquer outra, resignificando assim o todo a cada novo encaixe. Esse procedimento rompe com a linearidade aristotélica da “causa e efeito, onde a unidade de ação deve desenrolar-se a fim de revelar o destino/efeito, fruto das ações/causa das personagens.

Nesses trabalhos interativos dos anos sessenta, “[t]écnicas de colagem eram usadas, ao invés de temas centrais[;](...) modelos de sons ou de movinetos eram usados em repetição para criar efeitos hipnóticos(...) [C]oreográficos agora estavam colocando seu foco em movimentos de pedestres e observando relações básicas das pessoas ditas normais.[2]

Para exemplificar o procedimento da colagem na composição cênica contemporânea escolhemos trechos de vídeos de espetáculos de quatro encenadores da atualidade. Dois representantes do teatro: Bob Wilson e Enrique Diaz. E duas representantes da dança: Pina Bausch e Lia Rodrigues.
No espetáculo Shakespeares Sonette, Bob Wilson cola a gestualidade dos atores à uma partitura musical. Já na encenação Gaivota – tema para um conto curto, de Enrique Diaz com a Cia. dos Atores, o cenário é feito de cadeiras e objetos não representam mais o que são. Uma planta passa a ser um cérebro, a mancha de batom na cabeça de um ator torna-se sangue, aqui a colagem transborda os significados. Em Cravos, Pina Baush forra o palco com a flor que dá nome ao espetáculo e os bailarinos dançam em cima dessa paisagem provocando pouco a pouco a destruição do belo jardim. As ações são trabalhadas simultaneamente, coladas em um quadro cênicos onde a gestualidade compõem as sutilezas. A Cia. de Dança de Lia Rodrigues encena Pororoca, espetáculo de dança que nasceu do encontro entre os artistas/bailarinos e a comunidade de Nova Holanda, em Maré no Rio de Janeiro, onde a Cia. tem uma sede.
 Podemos notar nos exemplos acima a utilização do procedimento da colagem pela natureza híbrida dos materiais que compõem a cena e pela multiplicidade do discurso que a compõe. Notamos ainda que a cena contemporânea não se preocupa em trazer um significado predefinido, mas proporcionar uma experiência de encontro entre obra e platéia. Exige-se aqui um espectador ativo, que trazendo seu repertório psicofísico-emocional complementa a obra significando e resignificando as imagens apresentadas ao longo do espetáculo. O interessante nesse tipo de composição é observar como a multiplicidade trazida por cada parte entra em fricção com o todo, transbordando os sentidos e tornando impossível o reconhecimento das causas e dos efeitos.
Com o intuito de investigar as relações entre a cena contemporânea e o ensino de teatro decidimos tomar como modelo de estudo o procedimento da colagem aplicado por Pina Bausch em seus processos criativos.
Diretora do Tanztheater Wuppertal entre 1973 e 2009, Bausch desenvolveu a dança expressionista alemã ao organizar sua construção poética mesclando as linguagens da dança e do teatro. A partir dessa poética desenvolveu o famoso método de perguntas/alavancas que serviam para a criação de respostas/cenas. Esse sistema permite que a memória de cada bailarino/ator seja o elemento articulador do processo criativo. Cada resposta vem do referencial vivenciado sócio culturalmente pela história de cada corpo e ao trabalhar com pessoas de diferentes nacionalidades, Bausch amplia o repertório gestual de todo o grupo.
No trabalho de Pina a colagem aparece como principal estrutura para a composição da encenação. Ela reúne os materiais produzidos pelos bailarinos/atores durante os ensaios, seleciona, monta e define a última edição. A matéria prima  é de todos, a montagem é dela. “Se você coloca uma determinada ação ao lado de outra, elas se transformam mutuamente e as suas direções também. Quando todas estão juntas cada uma também se altera.” [3]
Ao observarmos o procedimento da colagem no processo criativo de Pina Bausch podemos decupá-lo em 4 etapas:

Primeira Etapa: A encenadora lança questões, frases, enunciados aos quais os bailarinos devem responder com gestos, textos, movimentos. Nesta etapa Pina vai criando o ambiente para que o tema se instaure e se ramifique através das associações feitas pelos bailarinos/atores.

Segunda Etapa: O grupo produz materiais cênicos. Novas questões são lançadas pela Pina. O tema se desdobra em ramificações.

Terceira Etapa: A encenadora realiza a seleção de recortes do material produzido. Monta os recortes selecionados em pequenas sequências.

Quarta Etapa: Bausch cola as pequenas sequências, organizando dessa forma a estrutura da encenação.

Podemos dizer que o processo criativo de Pina Bausch é calcado no repertório gestual trazido por cada bailarino/ator e na forma como a encenadora recorta e cola todo material, criando o que poderíamos chamar de uma rede hipertextual ao alinhavar diversas informações de diferentes tessituras. O termo hipertexto inventado por Theodore Nelson, seria a idéia de uma escrita/leitura não linear em um sistema de informática, onde a seleção se dá por livre associação. Ao examinarmos o processo criativo de Pina Bausch à luz do conceito de Nelson podemos ousar dizer que o mesmo é hipertextual, uma vez que é feito por partes e estas estabelecem atualizações a cada nova justaposição, a cada sobreposição, gerando e reformulando os significados.

Tecnicamente, um hipertexto é um conjunto de nós ligados por conexões. Os nós podem ser palavras, páginas, imagens, gráficos ou partes de gráficos, sequências sonoras, documentos complexos que podem eles mesmos ser hipertextos. Os itens de informação não são ligados linearmente, como em corda com nós, mas cada um deles, ou a maioria, estende suas conexões em estrela, de modo reticular.” [4]

A obra resultante desse processo obviamente não corresponde ao modelo dramático e rompe totalmente com a linearidade de uma narrativa textocêntrica. Em uma rede não importa o que veio antes ou depois, o presente aparece interligado pelo passado e pelo futuro, misturando os fatos e os organizando através de outras lógicas.
Ao trazermos o modelo de colagem utilizado por Pina Bausch em seus processos criativos e a idéia de leitura/escrita hipertual de Theodore Nelson para a sala de aula podemos estabelecer uma ponte entre o fazer teatral contemporâneo e o ensino de teatro.  Esse sistema permite que cada participante traga suas referências para o processo, utilizando-se de sua memória corporal como ponto de partida para a criação artística. Cada corpo acrescenta sua história, suas experiências, compondo dessa forma um mosaico de associações, criando uma rede de conexões acerca de um determinado tema. Tal procedimento aplicado ao ensino de teatro possibilita que iniciantes possam entrar em contato com essa forma de composição contemporânea, sem necessariamente passar pelo modelo dramático.
A dança como aliada para ensino de teatro contemporâneo parece trazer a tona as questões do corpo na atualidade, sua presença, beleza e qualidades gestuais. O procedimento de colagem, junto ao sistema de perguntas e respostas formulado por Pina Baush quando aplicado com alunos iniciantes pode promover a apreensão da linguagem teatral sem impor uma hierarquia entre os elementos.

...é na dança que as novas imagens corporais podem ser consideradas de modo mais claro. A dança é radicalmente caracterizada por aquilo que se aplica ao teatro pós-dramático em geral: ela não formula sentido, mas articula energia; não representa uma ilustração, mas uma ação. Tudo nela é gesto. [...] A realidade própria das tensões corporais, livre de sentido, toma o lugar da tensão dramática. O corpo parece desencadear energias até então desconhecidas ou secretas... [5]

Após investigar as relações entre a cena contemporânea e o ensino de teatro tendo como modelo o procedimento da colagem aplicado por Pina Bausch em seus processos criativos, concluo que ao trabalharmos na fronteira entre as linguagens cênicas da dança e do teatro estaremos estimulando nossos alunos a experienciar formas de composição utilizada pelos artistas da cena contemporânea. E ao utilizarmos o procedimento da colagem com alunos iniciantes estaremos promovendo a autonomia dos participantes que se apropriarão os meios de produção do material cênico.
Finalizo então com a descrição de dois jogos para serem desenvolvidos em sala de aula ou ensaio, aos interessados no estudo da cena contemporânea:

  1. Jogo Verbo-Imagem
*O professor deve ter em mãos cartas com diferentes verbos escritos, como por exemplo: Amar, viajar, navegar, espirrar, deslizar e etc.

O grupo caminha pelo espaço até que o professor sorteie um verbo e fale em voz alta aos alunos que devem imediatamente criar uma imagem com o corpo/estátua a partir da associação feita. O procedimento é repetido por quatro vezes, ou seja, cada participante terá quatro imagens armazenadas. O grupo é divido em dois e através do procedimento da colagem devem construir uma paisagem/imagem utilizando as estátuas construídas individualmente na primeira parte do exercício.

  1. Jogo Verbo-Imagem 2
O grupo é dividido em dois e todos caminham pelo espaço até que o professor sorteie um verbo e fale em voz alta aos alunos que devem construir imediatamente uma imagem coletiva. O procedimento é repetido por quatro vezes, ou seja, cada subgrupo terá quatro imagens armazenadas. Em um segundo momento os subgrupos devem, através do procedimento da colagem, organizar as imagens em uma ordem, compondo assim uma pequena sequência cênica.


 BIBLIOGRAFIA

FERNANDES, Ciane. Pina Baush e o Wuppertal Dança-Teatro repetição e transformação. São Paulo: AnnaBlume Editora, 2007.
CYPRIANO, Fábio. Pina Bausch. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
KATZ, Helena. Pina Bausch. Jornal de Tarde. SP: 11/12/1980.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
LÉVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência. São Paulo: Editora 34, 1993.
__________. O que é virtual. São Paulo: Editora 34, 1996.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Editora Perspectiva, 1996.


[1]WILSON, Robert. In CYPRIANO, Fábio. Pina Bausch. São Paulo: Cosac Naify, 2005. p.07.
[2] CANTON, Katia. In FERNANDES, Ciane. Pina Baush e o Wuppertal Dança-Teatro repetição e transformação. São Paulo: AnnaBlume Editora, 2007. p.23.
[3]KATZ, Helena. Pina Bausch. Jornal de Tarde. SP: 11/12/1980. p.14.
[4] LÉVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência. São Paulo: Editora 34, 1993. p. 33.
[5] LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p.339,340.

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